Artigo sobre “Favela é Moda” e trilogia do corpo, por Marco Antonio Gonçalves

Favela é moda: corpotética e cinema de compromisso 

por Marco Antonio Gonçalves (1)

Favela é moda dá continuidade a uma sólida construção, proposta e realizada por Emilio Domingos em seus dois longas metragens anteriores – A Batalha do Passinho e Deixa na Régua –, constituindo assim a trilogia definidora de um estilo consistente e arrojado de se produzir cinema. Este estilo salienta dois modos conceituais inovadores no cenário do documentário contemporâneo que nomino, aqui, como corpotética e cinema de compromisso.

O conceito de corpotética (corpothetics), formulado pelo o antropólogo visual Christopher Pinney (2), leva em conta a ordem do sensório, do corporal que ao conectar corpo e imagem expressa a experiência corpórea como totalização estética produtora de modos de ser e estar no mundo. O passinho, a dança, o movimento, é uma mimese que nos faz aceder a uma conceituação de música, de som que se cristaliza em pura imagem. Deixa na régua engendra uma estética do cabelo, do ‘fazer a cabeça’ em sentido literal e figurado, nos remetendo a formas de socialidade que, ao instituir um espaço de troca de derivações corporais, centra no corpo a emulação e criação de razões e práticas culturais. Favela é moda, mais uma vez, reinventa uma corporalidade apoiada em gestos, performances, conhecimentos.

Favela é moda nos apresenta o processo de se tornar modelo, o que implica em modelar corpos, modalizar sentidos, modular afetos. Esse processo de construção de corpos-modelos precipita a formação das pessoas/personagens uma vez que, nesta condição, são capazes de transformar sua potência corporal/sensorial em críticas que põem em cheque as múltiplas representações naturalizadas sobre seus corpos, sobre a favela. Esta reflexividade gera, assim, desterritoralizações, desidentificações, deshistorizações que desencadeiam, por sua vez, novas historicizações, outras identidades e percepções territoriais. Reconta-se, assim, uma história que se inicia com corpos negros em navios negreiros que cruzaram o atlântico e que, uma vez transplantados, se modelam pela luta e resistência. Corpos-modelos contemporâneos, ao tomarem como modelos os corpos escravos, podem se reapropriar de territórios cotidianos, da ‘correria’ do dia-a-dia (dos transportes públicos, de ruas cheias de camelôs) por meio de uma intervenção que afirma um lugar de pertencimento e identidade coletiva.

Assim, ser modelo é uma autoconstrução da pessoa, juntar suas partes, histórias, identidades. As pessoas/personagens recortam revistas de moda, produzem uma colagem. Cortam, montam, justapõem pedaços de papéis que se insurgem contra uma estética- dominante. Tesoura e cola instauram um novo padrão, estética outra de peles, corpos, cabelos, formas, roupas. Da Vogue se constrói uma nova voga, um estilo. Apropriação/usurpação fenomênica, subjetiva e sociológica. Retornamos, assim, ao momento inaugural fundador de uma agência, quando Júlio César inicia seu estudo de moda ainda como porteiro que, ao recolher o lixo do prédio, achava as revistas de moda descartadas e delas fazia uma leitura favelizada, precursora de seu empoderamento, revelando uma intenção em produzir o que define como moda de resistência.

Favela é moda aborda questões que estão na ordem do dia, na pauta do capitalismo hegemônico-normativo como empreendedorismo, sucesso, competitividade, autoestima, autoconfiança. Porém, de um ponto de vista radicalmente distinto. Tornar estas questões críticas transforma a opressão em empoderamento. Esta perspectiva inovadora é expressa por Júlio César no ponto de partida do filme ao afirmar que não quer ser uma ONG e muito menos um projeto social, quer ser empresa de moda. Favela é moda, aqui, redobra seu sentido, ao favelizar no sentido de reinterpretar, de se apoderar do pensamento capitalista contemporâneo, da Economia, as/os modelos desconstroem estereótipos, preconceitos, afirmando-se, portanto, como sujeitos, dotados de intenções, ações, planos. É da perspectiva da favelização que os personagens modelam seus corpos e que se tornam, simultaneamente, modelos para si mesmos e para outrem. Dotados de subjetividade são, na condição de modelos, capazes de produzir através da crítica social influentes reflexões sobre o mundo de um ponto de vista situado, definitivamente, na favela que passa a ditar a moda, a nova tendência, um ousado estilo de pensar. Esta é a empresa, o empreendimento, o intento de Júlio César com a formação da agência de modelos, a Jacaré Moda, que reverbera novos corpos, novas vozes, novas caras oriundas das chamadas periferias do Rio de Janeiro.

Camila ecoa esta modelização: “quando você se olha no espelho e diz… eu posso tanto como qualquer outra pessoa… nós estamos equiparados, não tem nada que eu deva a eles”. Simetrização de uma relação. Moda, nesta nova configuração, forma um pensamento, expressa múltiplos efeitos no mundo. Clariza chama a atenção para a importância do conceito gambiarra enfatizando que é menos falta que virtude. Constituído e constituinte da estética da favela, torna-se efeito, revira os sentidos e os lugares estabelecidos.

O conceito de corpotética provoca, pela via do sensório, a não separação entre a imagem e o observador, entre aquele que filma e o que é filmado, o que põe em relevo uma relação e não limites, fronteiras entre o eu e outro. Esta relação, sua especificidade, propicia o compromisso. Compromisso com pessoas/personagens construídos no/pelo/com o filme. Esta é a partida conceitual deste estilo saliente que engendra o processo de realização de Emilio Domingos: um engajamento com pessoas/personagens e, sobretudo, com seus devires imagéticos. Cinema de compromisso parte, assim, de pressupostos essenciais capazes de precipitar regimes visuais que se apoiam em processos de simetrização e equivalência que ao levarem, em toda a sua radicalidade, o ‘outro’, o ‘filmado’, à sério, dissolvem os grandes divisores, as oposições sujeito/objeto, nós/eles, eu/outro.

compromisso é aquilo que antecede, que precede conceitualmente, o projeto fílmico ou a mise-en-sceneCompromisso não deve ser confundido com ética ou partilha numa relação com os filmados, conceitos há tempo conhecidos pelo documentário moderno, pelo menos desde o cinema de Jean Rouch(3). Compromisso ao transcender estas supostas divisões, escapa de um lugar de realização que se concentra em ‘encontrar um filme’, ‘produzir uma mise-en-scene’, ‘mapear conflitos’, ‘instituir dramas’, ‘elencar problemas’, ‘precipitar cenas’, termos que são lugares comuns nas realizações documentais. Compromisso não é condescendência, voluntarismo, filantropia. É pressuposto de que a Favela é moda, modula uma ontologia, estrutura princípios organizatórios transformadores de sentido. Compromisso é operar a lógica fílmica através de uma simultaneidade de corpos/afetos/intelectos em que a distinção entre imagem e observação não se institui, não tem rendimento. A frase de Emilio Domingos proferida sobre seu filme ao jornal O Globo, na estreia do Favela é moda no Festival do Rio, ecoa este sentido de compromisso: “O que os personagens falam ali é realmente o que eu quero dizer”. Realizar um Cinema de Compromisso é instituir esta possibilidade de coincidência de perspectivas, de precipitar questões em que não são necessárias explicitações de um lugar de fala, problematizações sobre a alteridade, reflexões sobre a diferença enquanto categoriais definidoras da condição de realização do documentário moderno situado no plano, sobretudo, de imagens contraditórias. O compromisso se realiza em outra dimensão, na ordem do afeto, do empático, na coincidência de perspectivas, nos acordos firmados. O compromisso tomado como dispositivo, como modo próprio de realizar, nos dá a ver um regime imagético constituído pelo transbordamento afetivo cênico em que pessoas/personagens manifestam e revelam, também, seu compromisso a partir da infraestrutura dos afetos, através de seus corpos. Cinema de Compromisso é o que define este potente estilo que precipita na tela a sincronicidade dos afetos entre a realização e os filmados expressando a delicadeza de um encontro compromissado que se manifesta pela aposta minimalista da qualidade relacional, capaz de construir mútua inteligibilidade ao invés de produzir espaço para contradições e paradoxos. O dispositivo do compromissar vai muito além dos filmados e do realizador. Irradia-se para os espectadores que, ao final da sessão, estão compromissados com Júlio, Renan, Giorgia, Caio, Clara, Pilar, Gabriel, Lucas, Clariza, Narlan, Raquel, Camila, Mariane, Helena, Hanna, Karina, Rayane, Cesanne, Vitoria, Ricardo, Daniel, Micaela, Tamara, Pedro, Gomez e Matheus. Todos juntos, agora compromissados, acedem à perspectiva de que Favela é, literalmente, moda: modos de agir, viver e sentir coletivos.

 

(1) Professor Titular de Antropologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq.

(2) Pinney, Christopher. 2004 “Photos of the Gods”: The Printed Image and Political Struggle in India. Londres, Reaktion Books.

(3) Ver Gonçalves, Marco Antonio. O Real Imaginado. Etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch. Rio de Janeiro, Topbooks, 2008.

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